quinta-feira, 5 de maio de 2011

Gerardo Mello Mourão



Nascimento de Jesus


Suspeitai dos anjos:
das ânforas da voz
sabem tirar a mágica do sopro
e sopram sobre
as águas do primeiro dia
                            – o sopro
que conhece o caminho
pisado pelas virgens
                         e o milagre
do lírio feito rosa.

Suspeitai da estrela:
ela caminha sobre
a cabeça dos reis no azul
de sua estrada
                              até
encontrar a inocência de um deus
                             ali
                            onde
uma estrela
inclina a fronte declina a luz.

Suspeitai dos pastores e da flauta
são cúmplices de madrugadas e anjos
e das estrelas
e da canção inventada
                              quando
a aurora cede – e um deus
recém-nascido ocupa o seu lugar.

Do olhar da voz do aceno suspeitai
pois súbito anunciam
a alegria dos homens
                              a glória – dizem –
                              quando
da flor a flor saúda
a flor e a paz
e a paz
dos anjos das estrelas dos pastores
                               da flauta
e uma criança
pastoreia o país.


Gerardo Mello Mourão
Ipueiras – CE
(08/01/1917 - 09/03/2007)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Gláucia Lemos


Pizza de rúcula


Os pés sob a mesa, as mãos sem destino.
As palavras vazias
e as líricas chaves do quarto do hotel.

A presença banal das coisas banais,
os pratos, talheres, o cristal dos copos
enchendo o vazio dos espaços sem nome.

Três dias, dois dias, um dia somente,
e o trem vai passar
vai passar para sempre.
Maldito relógio.

O último pedaço da pizza de rúcula
sobrando no prato de porcelana branca.

No último instante, ainda um abraço.
Um resto de campari colorindo um copo
e no amargo silêncio incolor, ainda um olhar,
um último olhar deixando o rastro.

E os pneus do carro no rastro do asfalto
molhado de chuva, molhado de ausência
que ainda continua partindo
em cada porção de pizza de rúcula
em um prato qualquer de porcelana branca.


Gláucia Lemos
Salvador – BA (19??)

domingo, 4 de julho de 2010

Roberto Piva


A piedade


Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na
extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida

as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio boia? Por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos


Roberto Piva
São Paulo – SP
(25/09/1937 – 04/07/2010)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Gabriel Nascente



Confissão


I

Quando escrevo um poema
parece que tem um menino chorando
no meu sangue.

Eu escuto o choro dele longe, afogado.
(Meu duelo de duendes na madrugada):
e me ausculto então penalizado
sem fôlego
para planger a treva da margem
dos teus olhos.


II

No poema
o mar é uma garganta de sinos,
condomínio de monstros:
de graníticos sonhos
de sal,
o mar.


III

Quando escrevo um poema
eu gero um sonho.
Parece que a humanidade
toca piano dentro de mim.


Gabriel Nascente
Goiânia – GO (1950)

domingo, 4 de abril de 2010

José Inácio Vieira de Melo

Foto: Ricardo Prado

A casa dos meus quarenta anos


Assim é a casa dos meus quarenta anos,
assombrada e sóbria como um bacurau.

Em seus largos cômodos,
habitam uma enorme solidão
e muitas vontades de vida.

É noite e estou em meu quarto
urdindo meus infinitos à eternidade.
Eu – apenas eu – eu.

Lá fora, uma sinfonia de questionamentos:
grilos, sapos, rãs na sua intermitente litania
enlouquecem meus fantasmas.

A minha casa, às três horas da madrugada,
tem os olhos bem abertos – esbugalhados sertões –
e os seus fantasmas, somatórios do eu,
vão se arrumando do jeito que podem.

Um, no quarto ao lado,
implora para que desatem o nó da forca.
Não suporta mais as folhas da algarobeira
chorando o seu destino.

No quarto do outro lado,
outro choraminga suas dores, suas pernas quebradas,
o sangue escorrendo para o nada
(esse espectro dói demais e a sua grande
novidade é saber que vai morrer).

No quarto derradeiro,
os morcegos dormem sossegadamente
e seu mundo não é de cabeça para baixo.
No quarto derradeiro da casa dos meus quarenta anos,
os morcegos adubam o terreno e aguardam a chegada
de mais um dia, de mais um ano.

E assim, no bater das asas do galo pedrês,
o choro do recém-nascido.

E de dia a casa dos meus quarenta anos
é cheia de janelas azuis abertas para o azul.
E uma multidão de ventos vem assobiar dentro dela,
vem renovar os ares, sacudir os quadros nas paredes,
jogar meus retratos pelo chão.
Ventos dadaístas
a remexer nos meus poemas, mudar seus versos,
rearrumar suas estrofes.

E o dia vai crescendo com uma claridade medonha,
e as telhas da minha casa abrem os olhos
e olham para o alto e se benzem e dizem amém
(cada telha da casa dos meus quarenta anos
é um olho aceso espiando dentro de suas cores).

E há momentos em que tudo que é bicho se cala
e a casa mais parece um cemitério.

A casa dos meus quarenta anos é caiada de branco
e tem janelas azuis abertas para o azul.

A casa dos meus quarenta anos – cemitério de ilusões.


José Inácio Vieira de Melo
Olho d'Água do Pai Mané - AL (1968)

terça-feira, 23 de março de 2010

Torquato Neto


Cogito


eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


Torquato Neto
Teresina – PI
(10/11/1944 – 10/11/1972)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Jorge Tufic




(Poética)


Comunicar-me? Antes seja com a vida
que me circunda, enigma sem palavras.
Depois o resto: a seca geografia
dos léxicos varridos pela fuga
dos centauros bordados pela chuva.
Me deixo então fluir secretamente
em tudo que me amplia ou me reduz
- meu corpo sobre lâminas imóvel
- minhas sandálias rotas de evangelho.
Agora, sim, de posse da linguagem
que me habilita, como o peixe ao mar,
comunico ao leitor possivelmente
algo mais do que sou - talvez aroma
de rosa a se cumprir num outro idioma.


Jorge Tufic
Sena Madureira - AC (1930)

sábado, 23 de janeiro de 2010

Olga Savary



Acomodação do desejo


I

Dos que se amam na cama rente às nuvens,
nestes jardins ferozes, vê-se que amanhecem.
Nela, anca e espáduas eram como água.
Nele, tudo semelhante à terra. Seus corpos:
êxtase e terror dos deuses.
Que o comova o silêncio de seu corpo morno,
o fragor mudo do seu corpo desabado.
E que ela se abra como se abre uma urna
que se abre não revelando o conteúdo.


II

Deito-me como quem é livre à beira dos abismos
e estou perto do meu desejo.

Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,
dos lugares de água, dos regatos perdidos,
lá onde morremos de um vago êxtase,
de uma requintada barbárie estávamos morrendo,
lá onde meus pés estavam na água
e meu coração sob meus pés,
se seguisses minhas pegadas
e ao êxtase me seguisses
até morrermos, uma tal morte
seria digna de ser morrida.

Então morramos dessa breve morte lenta,
cadenciada, rude, dessa morte lúdica.


Olga Savary
Belém - PA (1933)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Miguel Jorge


No mar nenhum barco


Os amores são largos e longos e não cabem nas cartas.
A noite lenta fere de faca a luz cega do medo.
Indiferentes, as borboletas são anjos vestidos de prata.
Assim, os musgos vão cobrindo de vermelho os moluscos
dentro das caixas.
São do domingo os escargots, lentas flores, colocadas sobre
bandejas de prata.

Talvez não se possa evitar a falta de pão, reflexos da ira,
a dor que não quer se dar aos filhos.
Dormem as naves sobre as janelas do mar, talvez um barco,
igual a um barco, indo além do mar, brasa da alma. (Baco
num riso igual a um risco de língua nas bocas.)

Igual a um casaco de frio que se pendura detrás da porta.
Igual às ondas a testemunhar as rosas se desfazendo no branco
laço das águas.
(A noite carrega os diamantes no impacto do chão que se faz
cinza).

Se viam roucas as Américas, a constituição dos ventos cobrindo
lábios muito finos. Estrelas ostentam um festim ameno de
vozes. Os ratos, os gatos, o nojo anunciado. O gozo desfeito
em nada. se põem de lado, ainda mais quando do céu se
toma lei e posse de secretos códigos.


Miguel Jorge
Campo Grande - MS (1933)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Helena Ortiz


sub-rosa


vêm das abelhas às vezes
essas vozes vespas
esses zumbidos vorazes

vem na poeira o tom
sussurrado que precede
o pulsar de um continente

é tênue o farfalhar
sub-rosa
primeiro de viés

depois pelas veias
pelas vértebras
rebentando os vasos

logo o coração transido
pula e chicoteia
incessante bater de panelas
um ferrão subjuga a aurora


Helena Ortiz
Pelotas - RS (1947)